ZÉ, O MESSIAS

O fato impactante dos últimos dias diz respeito ao mal ajambrado golpe de Estado, que teria sido intenção acalentada pelo entorno mais próximo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Teríamos um Moisés, vestido de Messias, abrindo o mar vermelho e propiciando a passagem do povo hebreu, perseguido por Ramsés, para a terra prometida. O que se viu, então? Um arrematado blefe. O mar vermelho não se abriu, o Messias ficou a ver navios, o povo não tinha sangue hebreu, restando, ao final da ópera bufa uma lupa descobrindo maquinações ilegais em celulares de um ajudante de ordens de Bolsonaro com ressonância em outros aparelhos da “tchurma” envolvida na pantomima. A fé que arregimentava o exército de Brancaleone, sob a vontade do ex-capitão Bolsonaro, era a de que exércitos de verdade poderiam não aceitar as tintas vermelhas do mar, arrastando de supetão as hordas inflamadas do PT e seu ímpeto revolucionário com uma pseudo tentação para implantar um “regime comunista” no país. O fiasco era previsível. Vamos aos textos e contextos. O comunismo foi embora desde a queda do Muro de Berlim nos idos de 1989. No Brasil, a chama revolucionária, dos tempos de Carlos Prestes, foi se desmanchando ao longo de uma história de arrefecimento do comunismo, que não resistiu aos ares libertários das democracias e ao impulso do capitalismo. Resta hoje, aqui e ali, uma lembrancinha dos velhos tempos, sob o “comunismo” disfarçado da China, mais próximo ao que se chama de capitalismo de Estado. Na Rússia, o que sobram são retratos dos velhos revolucionários nas praças e paredes das casas. No Brasil, o fervor de ontem resultava de um embate entre ideias, a noção de que o comunismo viria resgatar a dignidade das pessoas, a noção de que as imensas desigualdades brasileiras seriam equacionadas na mesa dos repartes das sobras para todos e por todos. O amaciamento das ideologias, o arrefecimento dos partidos de massa, a pasteurização partidária, sob a onda dos  catch-all parties (partidos do toma-lá-dá-cá), e a procura de novos polos de poder – as entidades intermediárias da sociedade – funcionaram como colchões de amortecimento ao velho ideário. Esses vetores se dirigiram a um espaço de ajuntamento de ideologias, a que se deu o nome de social-democracia. Uns partidos mais para lá, outros mais para cá, com as Nações elegendo seus dirigentes ao sabor destes ventos mutantes. O fato é que a tocha incandescente do passado permitiu acender outras chamas mais acolhedoras. O comunismo embutia a ideia de luta de classes, de embate nas ruas, de extinção dos contrários, de sangue correndo em vielas e espaços de trabalho.  Tem essa moldura as cores verde, amarela, azul e branca do Brasil? Pouco a ver. O país foi erguido sob o trabalho do português-colonizador, o negro trazido à força da África e dos povos originários. Um composto étnico-racial que nos forjou com a têmpera de uma unidade linguística que resistiu à dimensão territorial, de uma índole pacífica, o que não significou dobrar a cabeça e dizer amém aos poderosos que, em certos momentos, tentaram driblar a nossa brasilidade. São inúmeros os movimentos libertários que deram cor à nossa paisagem. Mas isso nunca significou pendor para a guerra. Quem assim pensou e defendeu, teve que reconhecer sua errática visão. Vejam o PT. Que pensava, por ocasião de sua criação, em instituir em nossas terras o socialismo à moda antiga. Passou 13 anos no poder, agora esticados com mais um mandato para Lula. E o que faz nada mais é que uma política praticada na Velha República até hoje. A lei franciscana dá seu tom geral. Volto ao tom inicial de minha reflexão. Existia um mar vermelho para o Messias ordenar sua tentativa de passagem? Não. Existiam ameaças de morte ao povo hebreu? Não. Existia um núcleo de apoiadores, pessoas de índole bajuladora, ansiosas para continuar com suas benesses à sombra do Estado. Esse grupelho só pensava naquilo: dar um golpe para continuar no poder. O Messias foi embrulhado. Parecia Zé afundado e perdido no poço, da historinha que já usei mais de uma vez. Zé caiu num poço profundo. Desesperado, tentava, por horas se­guidas, escalar as paredes. Quando conseguia subir alguns metros, caia novamente. Obcecado pela ideia de se salvar, não percebia a corda lançada por um desconhecido que por ali passava. Zé não conseguia nem ouvir o apelo: “pegue a corda, pegue a corda”. Surdo, a atenção voltada para a tarefa, só reagiu quando sentiu a dor de uma pedra jo­gada nas costas. Furioso, olhou para o alto, viu o desconhecido e gri­tou: “o que você deseja? Não vê que estou ocupado? Não tenho tempo para preocupar-me com sua corda”. E recomeçou o trabalho.Depois de pedradas insistentes nos costados e um intenso clamor cívico, Zé, o Bolsonaro, felizmente começa a despertar do estado catatônico em que se encontrava, saindo do poço profundo. Pois é. Zé está desperto e convocado a enfrentar os tribunais. O Brasil abre as cortinas de uma nova era. Na esteira de quase três décadas, as instituições passaram por um esforço de organização. Hoje, pode-se perceber razoável consenso em torno de metas coletivas. Quem acredita que o comunismo está à espreita, deve dormir, todas as noites, debaixo da cama, curtindo sua paranoia. 
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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